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Jovem Cientista | Vida de inseto: biólogo superou medo de infância e se especializou em formigas venenosas no Butantan

Gustavo Pinheiro defende a importância de estudar venenos não convencionais como o da formiga-de-fogo, espécie invasora que danifica plantações e provoca acidentes


Publicado em: 17/12/2025

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Marília Ruberti


Na infância, “medroso” era praticamente o sobrenome de Gustavo Filgueiras Pinheiro, 25. O menino morria de medo de tudo quanto é bicho: besouro, abelha, mariposa, barata. Apesar de admirar os insetos (de longe), trabalhar com eles quando crescesse nem lhe passava pela cabeça. Quando começou a cursar Biologia em 2020 na Universidade de Guarulhos (SP), sua cidade natal, seu objetivo era ser especialista em genética. Contrariando todas as expectativas, porém, ao longo da graduação o estudante acabou mergulhando em um curioso universo: o das formigas venenosas.

Hoje, Gustavo investiga a composição do veneno da formiga-de-fogo ou formiga lava-pés (gênero Solenopsis), nativa da América do Sul, no curso de Especialização em Toxinas de Interesse em Saúde do Instituto Butantan. Embora não cause muitos acidentes no Brasil, esse pequeno inseto é invasor em outras regiões do mundo e gera sérios problemas ao meio ambiente e ao ser humano. Ainda assim, seu veneno é pouco conhecido pela ciência, o que chamou a atenção do jovem.

“Uma vez eu escutei que a gente só tem medo daquilo que não conhece. Então, decidi estudar esses bichos até perder o medo. Foi a melhor coisa que fiz na vida, porque me encontrei na área”



Quando decidiu focar na entomologia (ciência que estuda os insetos), o estudante “se jogou” em experiências como viagens de campo, coleta, montagem de caixas entomológicas e identificação de espécies, enquanto conciliava as aulas da faculdade com o trabalho em uma farmácia de manipulação. “Eu saí de uma criança com medo de tudo para um adulto que pega uma barata na mão tranquilamente”, brinca.

Sua história no Instituto Butantan começou no último ano da graduação, em 2023, quando teve a oportunidade de passar um mês como visitante técnico no Laboratório de Coleções Zoológicas (LCZ). Sob supervisão da curadora da Coleção Entomológica, Flávia Virginio, Gustavo contribuiu para projetos de alunos e conheceu de perto o trabalho de pesquisadores da área.

O encanto foi tanto que os 30 dias viraram dois anos: em 2024, assim que se formou, o biólogo ingressou no curso de Especialização em Animais de Interesse em Saúde do Butantan, no LCZ. Já em 2025, emendou uma segunda especialização, desta vez em Toxinas de Interesse em Saúde, no Laboratório de Bioquímica.

Orientado pelo professor Guilherme Rabelo Coelho, pesquisador de laboratório no Butantan, Gustavo tem se dedicado ao desenvolvimento do perfil cromatográfico do veneno da formiga-de-fogo – uma espécie de “impressão digital” que permite identificar a composição exata da substância.

“Conhecer os componentes do veneno da formiga ajuda não só a entender o envenenamento e desenvolver tratamentos, mas também a explicar a história evolutiva do animal”



 

Pequenas (e poderosas) invasoras

Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), entre 2007 e 2023 foram registrados 5.446 casos e cinco óbitos causados por acidentes com formiga-de-fogo no Brasil – sendo dois por choque anafilático (reação alérgica grave). Durante sua primeira especialização no Butantan, Gustavo Pinheiro investigou o perfil epidemiológico desses casos. Ele descobriu que também havia muitos relatos de acidentes com a formiga na China e nos Estados Unidos, onde há duas espécies consideradas invasoras: Solenopsis invicta e Solenopsis richteri. O problema motivou até o desenvolvimento de um soro na China para tratar os pacientes – especialmente os casos de múltiplas picadas, em que o risco de choque anafilático é maior.

“As duas espécies não competem entre si e ainda se hibridizam [cruzam]. Por serem invasoras, não existe predador natural para elas nessas regiões. Tudo isso ajudou essas populações a se estabelecerem nos outros continentes”, conta o biólogo. “Outra particularidade é que elas costumam construir seus formigueiros próximo a construções humanas, o que explica a frequência de acidentes”, completa.

Além do envenenamento e da picada dolorosa em humanos, as formigas-de-fogo afetam plantações agrícolas, danificam equipamentos, deslocam espécies nativas de formigas e reduzem as fontes de alimento dos animais locais. Segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, estima-se que o prejuízo econômico gerado pela invasora chegue a US$ 8 bilhões por ano. Não à toa, o órgão possui uma unidade de pesquisa exclusivamente dedicada ao estudo e controle desses insetos.

Motivado a entender mais sobre a Solenopsis, Gustavo dedicou sua segunda especialização no Butantan à investigação das substâncias presentes no veneno da formiga – mais especificamente, as proteínas, que representam 5% do composto. São elas que atuam como alérgenos, sendo responsáveis pelos choques anafiláticos.

“Nos venenos de serpentes, por exemplo, existem proteínas específicas que facilitam a disseminação do veneno ou pioram o quadro de envenenamento. Baseado nisso, conhecer as proteínas do veneno da formiga também pode nos ajudar a entender melhor como se dá o envenenamento e como combatê-lo”, explica o cientista.

 

 

Pensando fora da caixa

Em um mundo onde acidentes com animais peçonhentos são um problema de saúde pública negligenciado, o estudante reforça que é fundamental pesquisar venenos não convencionais, para além de serpentes, aranhas e escorpiões. Afinal, essas toxinas também podem ajudar na prevenção de futuros desafios de saúde, além de serem uma potencial fonte de moléculas terapêuticas.

“A formiga-de-fogo é um desafio real em países como Estados Unidos e China. Conduzir esse tipo de pesquisa mostra que somos capazes de enxergar além das nossas próprias necessidades, e reforça que o envenenamento por animais no geral deve ser uma preocupação de todos nós. Nunca se sabe o que vai acontecer ou quando algo vai se tornar um desafio maior”, aponta Gustavo.

Mais do que estudar os animais visando o benefício humano, o biólogo também acredita na importância de compreendê-los por si só, entendendo como vivem e como se comunicam. As formigas, por exemplo, formam sociedades inteligentes e colaborativas há cerca de 120 milhões de anos e possuem um sistema de comunicação ainda pouco explorado pela ciência.

“Recentemente, perdemos uma grande cientista, Jane Goodall, que dedicou a vida a entender os padrões de comportamento dos primatas e foi duramente criticada ao longo da carreira. Hoje em dia, a ciência reconhece o quanto esse tipo de conhecimento é importante para a conservação”, destaca. Apesar de serem espécies invasoras em outros continentes, em seu ambiente nativo as formigas-de-fogo desempenham papel essencial na ciclagem de nutrientes, controle de pragas e como fonte de alimento.


 

Gustavo com os colegas do Laboratório de Bioquímica do Butantan

 

Determinado, pé de valsa e futuro professor

Os dois anos de especialização no Instituto Butantan foram os primeiros, desde a adolescência, em que Gustavo Pinheiro pode se dedicar exclusivamente aos estudos. Desde os 16 anos, ele já havia atuado em diferentes empresas como recepcionista e operador de SAC, e durante a faculdade trabalhou em uma farmácia de manipulação. A única hora livre que tinha entre o trabalho e a aula era dedicada à pesquisa em laboratório. Quando se formou, não teve dúvidas de que queria seguir no mundo acadêmico – seu sonho é ser pesquisador e professor universitário.

Hoje, o biólogo se prepara para ingressar no mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, onde seu atual orientador também leciona. Lá, pretende investigar possíveis compostos antitumorais presentes no veneno da formiga-de-fogo, a partir de uma hipótese levantada por pesquisadores chineses.

Quando não está debruçado sobre a Vida de Inseto das formigas no laboratório, o jovem se diverte nas aulas semanais de forró e jogando no computador – uma forma de se manter conectado aos amigos e conversar sobre a vida. Comunicativo, gosta de estar sempre rodeado de pessoas, e no Butantan não foi diferente: para ele, a troca de conhecimento com os colegas foi fundamental para seu desenvolvimento.

“O Butantan me mostrou que mesmo diante das dificuldades do dia a dia da pesquisa, é possível montar, expor suas ideias e fazer acontecer, e que não existe pergunta boba. Às vezes, as melhores ideias saem de cafés na copa. Nada do que eu conquistei teria sido possível sem o suporte dos meus colegas de laboratório, que me ensinaram tanto”, afirma.

Gustavo cresceu ao lado de uma favela em Guarulhos, onde mora atualmente com a mãe, e entre as batalhas de rima e poesia falada que frequentava na adolescência, conviveu com diferentes realidades sociais. Hoje, seu maior desejo é usar as oportunidades que teve para trazer contribuições à sociedade.

“O tipo de privilégio que eu tive pouquíssimas pessoas têm, então preciso retornar isso de alguma forma. A gente não faz ciência pra nós, a gente faz ciência pro mundo”

 

O jovem cientista com a equipe do Laboratório de Coleções Zoológicas